Ainda há lugar para os sindicatos? – Francisco Martins Rodrigues

Ainda há lugar para os sindicatos?. João Bernardo tem sérias dúvidas de que os sindicatos sejam ainda, na época actual, um instrumento de defesa dos assalariados.

É o que anuncia no subtítulo do seu livro Transnacionalização do capi­tal e fragmentação dos traba­lhadores. Ainda há lugar para os sindicatos?, Editorial Boitempo, São Paulo, 2000.E não pela falta de ética dos seus líde­res: “Os dirigentes sindicais po­dem manter os trabalhadores re­gularmente informados de uma boa parte das decisões tomadas nas reuniões de direcção e po­dem não levar no bolso o dinhei­ro da tesouraria, mas não é por isso que se altera a estrutura bu­rocrática dos sindicatos e que o seu funcionamento deixa de ser autoritário e centralizado.” O mais curioso é que estas ideias, transmitiu-as o autor a milhares de activistas da CUT brasileira em palestras, cursos e seminários ao longo dos últimos anos. Algo verdadeiramente impensável no nosso meio sindical…

A burocracia operária, tal é para Bernardo a chave para en­tender as derrotas do movimento neste último século. “Todos os fracassos do movimento operá­rio, sem excepção, resultam… de ele ter repetidamente permitido que as burocracias geradas no seu interior se convertessem nu­ma verdadeira classe explorado­ra”. Porque “a dialéctica social do capitalismo consiste na possi­bilidade de reforçar os mecanis­mos da exploração com elemen­tos gerados no interior do pró­prio processo de luta contra a exploração”.

Para ajudar a entender a di­tadura da burguesia de forma mais profunda e real, Bernardo introduz o conceito de Estado amplo. Este vai muito além do mero aparelho estatal (o “Estado restrito”), já que os patrões e ges­tores desfrutam, dentro das suas empresas, de autênticos poderes legislativos, executivos e judici­ais. “O governo, o parlamento e os tribunais reconhecem aos pro­prietários  privados e aos gesto­res uma enorme latitude na admi­nistração, na condução e na pu­nição da força de trabalho, ou seja, reconhecem-lhes uma ver­dadeira soberania”. E como o de­senvolvimento do capitalismo re­força continuamente esta sobera­nia paralela, estreita-se mais e mais o campo de manobra dos dirigentes sindicais, que tradicio­nalmente se apoiavam nas insti­tuições estatais para conter a voracidade dos capitalistas. Ao mesmo tempo que a aliança com os governos já não lhes garante força política, grande parte das empresas já não está interessada no aparelho sindical enquanto regulador do mercado de traba­lho. Resultado: os filiados deban­dam e as quotizações sindicais entram em queda. Daqui a ten­dência irreprimível dos burocra­tas sindicais para se tornarem eles próprios gestores capitalis­tas, através de participações em empresas, manipulação dos fun­dos de pensões, gestão de cursos de formação profissional pagos pelo Estado, etc.

Bernardo aborda depois a nova situação mundial para des­tacar o seu traço mais marcante: enquanto a classe capitalista au­mentou a sua coesão à escala in­ternacional, os assalariados con­tinuam fragmentados por catego­rias e fronteiras. “Actualmente temos os capitalistas internacio­nalizados e os trabalhadores re­partidos por nações”, situação inversa da do começo do século, quando os capitalistas estavam agudamente divididos e o opera­riado atingira um elevado grau de homogeneidade social e cultu­ral – o que ajuda a compreender a vaga revolucionária europeia de 1916-21. É esta fragmentação do mundo do trabalho que torna tão importante a luta contra o racismo. Bernardo critica com ra­zão os meios sindicais que, “mes­mo quando abordam a questão do racismo insistem em considerá-lo exteriormente aos conflitos do trabalho e em remetê-lo para o plano da cidadania, como se ele dissesse respeito a todas as camadas sociais, quando o racis­mo é hoje precisamente a ques­tão central da solidariedade na classe trabalhadora”. Um alerta que deveria ser tomado em conta também pela esquerda no nosso país…

Finalmente, haverá uma al­ternativa para os sindicatos? Ber­nardo admite que possam vir a renovar-se como órgãos de luta anticapitalista, mas só se um sur­to generalizado de lutas dos tra­balhadores derrubar a burocra­cia sindical. Outra hipótese é que o recomeço da ofensiva operária destrua ou relegue os sindicatos a um plano secundário e que uma estrutura democrática e basista – as comissões de trabalhadores – venha a substituí-los, como já tem acontecido em diversos paí­ses, em situações de profunda crise social.

Muitas observações de pas­sagem enriquecem este trabalho. Como as que interpretam a socie­dade soviética e a sua degenera­ção, tema a que o autor retorna em todas as suas obras.

Pode-se discordar, natural­mente, de diversos pontos de vista do autor. Suscita-nos dúvi­da, por exemplo, a tese de que a introdução acelerada de novas tecnologias não implica uma ten­dência inelutável para o aumento do desemprego. Ou a afirmação de que os meios dirigentes da UE procuram impedir a internacio­nalização das burocracias sindi­cais no espaço europeu, quando é o contrário que parece aconte­cer. Sente-se, sobretudo, a falta de questionamento do papel da pequena burguesia na subjuga­ção do proletariado, o que cinge demasiado a análise ao fenóme­no burocrático. Mas as explora­ções de João Bernardo sobre o mundo da luta de classes são sempre estimulantes porque rea­vivam a consciência das contradi­ções fundamentais e da via para lhes procurar solução.

Política Operária nº 76, Set-Out 2000